[DESMISTIFICANDO] Meereen é uma alegoria criada por George Martin para representar a Guerra do Iraque?

Meereen é uma alegoria criada por George Martin para a Guerra do Iraque?
Daenerys Targaryen observando Meereen do cume da Grande Pirâmide


É comum a gente transitar pelo fandom de ASOIAF e em algum momento topar com a teoria de que o arco de Daenerys em Meereen é na verdade uma alegoria escrita por George Martin para representar o percurso espinhoso dos Estados Unidos durante Guerra do Iraque. Ou ainda, uma forma do autor tecer uma crítica quanto ao papel interventor dos Estados Unidos sobre os países do Oriente Médio e as consequências dessa intervenção sobre as culturas e as relações sociopolítcas locais. Basta pensar no impacto que Daenerys causa sobre a Baía dos Escravos e a associação com a Guerra do Iraque torna-se logo sedutora.

Grosso modo, a Guerra do Iraque teve início no dia 20 de março de 2003, tendo como fio condutor o ataque as Torres Gêmeas em Nova Iorque, em 11 de setembro de 2001, e a alegação dos Estados Unidos de que o regime de Saddan Hussein estava desenvolvendo armas químicas e biológicas para serem fornecidas a terroristas inimigos dos EUA, embora isso nunca tenha sido comprovado. Entretanto, o ataque perdurou por 21 dias e resultou na morte de Saddan Hussein e sua força militar. Estima-se que quase 100 mil civis morreram durante os ataques, que contou também com o apoio da Inglaterra. Após isso, as tropas invasoras permaneceram sob o pretexto de que deveriam levar o país a um processo democrático para consolidação de um governo sob a égide do Ocidente, o que não impediu a guerra civil entre iraquianos xiitas e sunitas, muito menos as operações da Al-Qaeda no Iraque.

Como bem destacou Oadara em seu Tumblr, o fandom de algo age por vezes como uma câmara de eco. Quando algo é repetido infinita vezes dentro da câmara de eco, não importa o quão descaracterizado, distorcido ou incompleto isso possa soar, há uma probabilidade muito grande de que isso se torne uma verdade em algum momento. É exatamente isso que acontece na associação entre o Iraque e Meereen. Porém, já respondendo à pergunta contida no título dessa análise cabe agora dizer que não, Meereen não é uma alegoria em As Crônicas de Gelo e Fogo para a guerra do Iraque. Em primeiro lugar, Meereen foi introduzida pela primeira vez em A Tempestade de Espadas, livro publicado em 1999, quatro anos antes da Guerra do Iraque e um ano antes que o George W. Bush se tornasse presidente dos Estados Unidos. Em segundo lugar, e o mais importante, houve pelo menos duas ocasiões distintas em que o próprio George Martin repudiou essa teoria publicamente:


"Eu disse muitas vezes que não gosto de alegorias disfarçadas, mas certas cenas ressoam com o tempo. Outras pessoas levantaram o argumento, mais contemporâneo, de que isso poderia ter ressonâncias com nossas desventuras atuais no Afeganistão e no Iraque. Estou ciente dos paralelos, mas não estou tentando aplicar uma camada de tinta na Guerra do Iraque e chamar isso de fantasia. " (Livejournal - 20 de outubro de 2011)

Ou ainda: 


Estávamos conversando esta semana em que as manchetes das notícias foram novamente dominadas pelos conflitos na Síria, Iraque e Gaza, o que parecia apropriado porque uma primeira leitura de As Crônicas de Gelo e Fogo é de que as disputas e guerras fronteiriças são quase inevitáveis ​​para as comunidades humanas:

“Certamente, um dos principais temas dos livros é a guerra. Quase toda ficção de fantasia desde Tolkien se preocupa com a guerra. Nos autores que se inspiram em Tolkien, é sempre uma luta entre o bem e o mal, e os maus usam preto ou são feios. Eu queria colocar algumas dessas coisas em suas mentes, e então coloquei meus mocinhos - os homens da Patrulha da Noite - de preto, e o bem e o mal de ambos os lados. Mas certamente não é uma alegoria. Se eu quisesse escrever um romance sobre o Vietnã ou a Síria, é isso que eu faria. " (The Guardian - 16 de agosto de 2014)

Rendição de Meereen, por Stephen Najarian
Rendição de Meereen, por Stephen Najarian


Do mesmo modo, o Martin  entende por que as pessoas podem fazer esse tipo de associação, mas ressalva que nunca foi sua intenção, porque essa não é a história que ele está tentando contar.

Outra coisa que é frequentemente trazida de forma pejorativa nos debates sobre Meereen e o arco de Daenerys Targaryen de modo geral, é de que George Martin é um pacifista, o que logo faria dele alguém que odeia guerras e consequentemente estaria usando Daenerys (a personificação da guerra, segundo esses críticos) para ilustrar sua suposta preferencia pela paz. 

Quanto a isso, vale destacar que o autor assumiu posturas contrárias tanto em relação a Guerra do Iraque quanto a Guerra do Vietnã. Contudo, isso não significa que ele seja um pacifista completo ou  que não ache que não deva haver guerras. Na verdade, George Martin acredita que se uma causa for justa, vale a pena ir à guerra. Na citação a seguir, ele fala sobre não ser um pacifista e sobre lutar uma guerra justa:


“Você sabe: naquela época, [...] não lhe dariam o status de CO (consciente, que faz objeção a algo) se você apenas se opusesse ao Vietnã. Eles só lhe dariam isso se você fosse um pacifista completo e se opusesse a TODAS as outras guerras.

E eu não era um pacifista completo, você sabe. A grande questão que eles sempre perguntariam é se você lutou na Segunda Guerra Mundial contra os nazistas. Bem, sim, eu teria lutado na Segunda Guerra Mundial contra os nazistas.

Mas as pessoas no Vietnã não eram nazistas e eu não acho que os EUA tinham negócios no Vietnã e assim por diante. Então eu era contra aquela guerra em particular.

Ainda acho que a guerra do Vietnã foi uma péssima ideia para os Estados Unidos, mas EU AINDA teria lutado contra os nazistas. ” (Stroumboulopoulos)


Em um de seus livros, Sonho Febril, George Martin escreveu o protagonista do romance percebendo os verdadeiros males da escravidão. O protagonista da história, Abner Marsh, não acredita em escravidão no início do livro e assim ele não faz nada efetivo para evita-la. Contudo, no final do romance, ele se convence de que a escravidão deve terminar de todos os modos possíveis. No final do livro, ele confessa o seguinte:  


“Eu nunca me importei muito com a escravidão [...]. Porém, você não pode simplesmente ... usar outro ser humano como se não fossem pessoas. Sabe o que eu quero dizer? Tem que terminar, mais cedo ou mais tarde. Melhor se terminar em paz, mas tem que terminar mesmo que tenha que ser com FOGO E SANGUE, entende? Talvez seja isso que os abolicionistas estejam dizendo há muito tempo. Você tenta ser razoável, isso é certo, mas se não funcionar, você deve estar pronto. Algumas coisas estão erradas. Elas precisam terminar.  (MARTIN, George R.R. Sonho Febril. Editora Leya, São Paulo, 2015)


Deste modo, gostaria de chamar  atenção para duas conclusões possíveis a partir do que foi discorrido. A primeira é o uso do termo Fogo e Sangue, que conforme sabemos, são as palavras da Casa Targaryen. Atualmente em As Crônicas de Gelo e Fogo, Daenerys é a única remanescente desta casa e é engraçado perceber como é ela que está lutando neste momento contra o sistema escravista na Baía dos Escravos. A segunda coisa que quero chamar atenção é o sentimento que o autor está tentando transmitir ao leitor, por meio de seu protagonista. Nele, ele nos diz que, com certeza, você pode tentar ser razoável em acabar com a escravidão, mas se isso não funcionar (houve escravidão na Baía dos Escravos por centenas de anos e vimos como Daenerys trabalhou para ser razoável), então você terá que ficar violento e tudo bem, porque alguns coisas estão erradas e elas precisam terminar.

Dito isto, fica evidente que se o GRRM acredita que se uma guerra é realmente justa, vale a pena lutar. Também está claro como ele acha que a escravidão deve ser combatida, mesmo que seja com fogo e sangue.


Fonte: Oadara (Tumblr)


Por Luciana Gomes (Rhaenys)

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