[GOT] A Casa dos Imortais e o final de Daenerys Targaryen em Game of Thrones

 

Imagem HBO: Daenerys na Casa dos Imortais, segunda temporada de Game of Thrones 

A ida de Daenerys Targaryen até a Casa dos Imortais durante A Fúria dos Reis, é certamente um dos momentos mais emblemáticos da série As Crônicas de Gelo e Fogo (ASOIAF), do autor George Martin.   Em contrapartida, em Game of Thrones, a passagem da personagem pela Casa dos Imortais ocorreu durante o décimo e último episódio da segunda temporada, Valar Morghulis

Existe uma série de diferenças entre a série de TV e os livros no que diz respeito a este momento, a começar pelas motivações de Daenerys em ir até os Imortais de Qarth. Na série, ela vai até lá para resgatar os seus dragões roubados, enquanto nos livros ela vai para buscar verdade e conhecimento, e faz isso na companhia de Drogon. Suas motivações para ir até os Imortais justificam porque ela recebe uma série de visões, dentre as quais estão as famosas traições (por sangue, ouro e amor). Em Game of Thrones por sua vez,  Daenerys viu coisas bem pontuais, envolvendo a destruição da sala do Trono de Ferro, a Muralha de Gelo, Khal Drogo e Rhaego e por fim ela confronta Pyat Pree. Nos livros, Pree é apenas uma espécie de guia com interesses sombrios, enquanto no programa ele desempenhou o próprio papel dos Imortais. Veja aqui.

A partir do episódio Valar Morghulis, tornou-se recorrente a interpretação de que as visões de Daenerys no programa eram uma pista para o seu fim, o que eu discordo, embora não desconsidere. Porém, minha intenção com essa análise é mostrar porque eu acho que suas visões no programa durante a Casa dos Imortais não tinham a ver com o seu final no episódio O Trono de Ferro, mas sim com a Longa Noite, evento que sempre foi ou deveria ser o cerne de uma história baseada na série As Crônicas de Gelo e Fogo.  Isso faz com que a cena onde a vemos Dany caminhando pela Sala do Trono destruída após o incêndio de Porto Real, seja um retcon dos roteiristas David Benioff e Dan B. Weiss. Ou seja, uma mudança no passado da personagem, para justificar eventos do presente.

Não seria a primeira vez em Game of Thrones que os eventos do passado seriam modificados ou esquecidos para justificar as decisões do roteiro no presente. Uma dessas primeiras mudanças notáveis foi o esquecimento do filho de Rhaegar Targaryen com Elia Martell, Aegon Targaryen. Antes da season 7, Aegon havia sido citado temporadas anteriores, até ser completamente esquecido quando Jon Snow assumiu seu nome e foi legitimado pelo roteiro como filho de Rhaegar e Lyanna Stark. Do mesmo modo, na segunda temporada, durante o episódio Batalha da Água Negra, foi dito que os sinos não representavam rendição, sendo tocados apenas em situações especiais: casamentos e mortes de alguém da família real, anúncio de guerra etc. O que certamente foi modificado para a oitava temporada, como pudemos ver no episódio Os sinos. 

Talvez um dos maiores retcons do programa tenha sido Arya matando o Rei da Noite no episódio “A Longa Noite”, durante a oitava temporada. Após encontrar-se com Melisandre, Arya recorda o encontro das duas, ainda na terceira temporada do programa. Na ocasião, Melisandre diz a Arya que havia algo sombrio nela e que Arya fecharia muitos olhos: olhos castanhos, olhos azuis e olhos verdes. Veja aqui. 

Porém, na ocasião do encontro entre ambas as personagens na oitava temporada, a ordem dessas supostas mortes foi alterada, com os olhos azuis convenientemente sendo citado por último, ficando: castanho, verdes e azuis. Veja aqui.

Os olhos verdes no final da primeira revelação, certamente fazia uma referência a Cersei Lannister cuja morte por muito tempo esteve no cerne dos objetivos de Arya Stark. Objetivos que foram deixados de lado, uma vez que o desenvolvimento da personagem foi direcionado para o fim do Rei da Noite.

Você pode argumentar comigo que a ordem dos fatores não altera o produto, embora seja nítida as intenções dos roteiristas em alterar a "profecia" que Melisandre falou para Arya. Porém, acredito ser preciso se ater ao que foi escrito e desenvolvido até a oitava temporada. Arya tinha muito pouco a ver com o desenvolvimento da Longa Noite, ao contrário de Jon Snow, que inclusive aparece na sexta temporada sendo associado ao Príncipe que foi Prometido, a figura profética que deveria ser o responsável pelo fim da grande ameaça. Esse abandono tornou o próprio arco de Melisandre e Stannis Baratheon completamente inútil no retrospecto geral do programa. 

Porém, em entrevista recente para o Hollywood Report, a atriz que interpretava a Arya Stark, Maisie Williams, revelou que desde a terceira temporada o plano era fazer com que Jon Snow matasse o Rei da Noite:

“[Kit Harington] esperava que fosse ele [Jon Snow] também. Ele até chegou a dizer ‘vai ser dessa forma, me contaram na terceira temporada que eu vou matar o Rei da Noite’. E então ele leu o roteiro e era a Arya o tempo todo [Risos]. É, acho que seria muito óbvio. Honestamente, fico feliz que tenha sido a Arya. Acho que tive a melhor história da temporada final”.

  Contrariando a versão dada por Maisie, David Benioff e Dan B. Weiss revelaram em um Inside the episode, do terceiro episódio da oitava temporada, que a decisão de fazer com que Arya matasse o Rei da Noite havia sido tomada desde a season 3, pois Jon Snow parecia ser a escolha óbvia enquanto Arya parecia ser a escolha mais adequada. Essa teria sido a mesma temporada que eles disseram que planejaram a morte de Daenerys pelas mãos de Jon diante do Trono de Ferro. Seja como for, é importante observar que a cena onde vemos Daenerys na Casa dos Imortais, aconteceu uma temporada antes dessas supostas "decisões."

Do mesmo modo, é preciso destacar a decepção do ator Kit Hanrigton durante a mesa de leitura do roteiro da oitava temporada, onde o ator claramente parecia surpreso por não ser Jon a matar o Rei da Noite, o que faria sentido com o desenvolvimento de seu personagem se não fosse o compromisso dos roteiristas em chocar e subverter expectativas da audiência. É preciso chamar atenção para esse ponto. Para o compromisso dos showsrunners em subverter expectativas. Jon Snow não matou o Rei da Noite por ser óbvio, conforme mencionado por Maisie, apesar de todo o desenvolvimento entre os dois que poderia levar ao tão aguardado confronto entre eles.

Na reta final do programa, Game of Thrones sacrificou a lógica e coerência em nome do choque numa tentativa tosca e desajeitada de reencontrar a fórmula da imprevisibilidade que a fez famosa durante as primeiras temporadas. Ao lado disso, o aspecto mágico/fantasioso do enredo foi sendo esvaziado à medida em que a série se tornava mais sobre política e sobre poder conforme declarações dos próprios showsrunners durante o Austin Film Festival, em 2019:  Você realmente se sentou e tentou resumir os elementos dos livros? Você realmente tentou entender seus principais elementos? Não. Nós não. O escopo era muito grande. Era sobre as cenas que estávamos tentando representar e o show era sobre poder.

A Casa dos Imortais é certamente um dos momentos mais mágicos da história contada por George Martin para As Crônicas de Gelo e Fogo, mas em Game of Thrones ela se limitou a poucos acontecimentos. De todo modo, conforme já mencionei, essa cena fazia alusão não necessariamente ao final de Daenerys, mas a Longa Noite em si. Vale lembrar que nessa época:

1-      George Martin ainda era presente ao lado dos showsrunners na direção do programa;

2-      Daenerys havia começado a ser descaracterizada, mas ainda havia um desejo da personagem por um lar em conexão com a personagem dos livros;

3-      Na segunda temporada “o inverno está chegando” e a Longa Noite eram desenvolvimentos importantes e davam a entender que era o que era seria o grande ápice da história;

4-      Esse era um momento que a série ainda seguia os acontecimentos do livro, apesar de algumas alterações;

5-      George Martin ainda não havia se reunido com os showsrunners para revelar pontos do final dos personagens nos livros;

 

Imagens HBO: episódio Valar Morghulis e O Trono de Ferro

Sabemos da importância de Daenerys e seus dragões para o desdobramento da Longa Noite e o fortalecimento da magia em ASOIAF, sabemos inclusive que ela pode ser Azor Ahai e o Príncipe que foi Prometido (Princesa). De todo modo, irei explicar o que eu entendi da passagem de Daenerys pela Casa dos Imortais,  em Game of Thrones:

Assim que entra na Casa dos Imortais, Daenerys é levada a Sala do Trono de Ferro, onde ela ver o teto todo destruído enquanto uma neve fina caía cobrindo tudo. Então ela se aproxima do Trono e não o toca, porque ouve o choro dos dragões. Ela se afasta do Trono e chega na Muralha: Essa parte ao meu ver significa que ela deixaria o Trono para lutar na Longa Noite. A destruição na sala representa justamente o avanço dos caminhantes e a sua ameaça sobre toda a humanidade. O cerne da história do Martin não é e nunca foi o Trono Ferro. Ele não é necessariamente a parte importante, mas lutar contra os Outros sim e essa é uma verdade muito grande para o arco da personagem, ao menos nos livros.

Na Muralha, Dany encontra Khal Drogo e Rhaego dentro de uma cabana: A muralha mais uma vez simboliza a Longa Noite, era a última fronteira entre os vivos e os mortos. Encontrar Khal Drogo não significa sua morte, significa que ela estava sendo testada por um desejo profundo: ficar com seu filho e com ele. 

Nos livros, Daenerys é testada em vários momentos pelos Imortais para permanecer presa no templo com eles, conforme os trechos a seguir:

"Conheço esta sala, pensou. Lembrava-se daquelas grandes vigas de madeira e das faces de animais esculpidas que as adornavam. E ali, do lado de fora da janela, um limoeiro! Vê-lo fez o coração de Dany doer de saudade. É a casa de porta vermelha, a casa em Braavos. Assim que aquele pensamento atravessou seu espírito, Sor Willem entrou na casa, apoiando-se pesadamente em sua bengala.

-Princesinha, aqui está – ele disse com sua voz áspera e bondosa. – Venha, venha até mim, senhora, está em casa agora, está a salvo agora – sua grande mão enrugada estendeu-se para ela, suave como couro velho, e Dany quis pegá-la e beijá-la, desejou isso mais do que já tinha desejado qualquer outra coisa na vida. O pé avançou, e então pensou: Ele está morto, está morto, o querido velho urso morreu há muito tempo. Recuou e fugiu." (MARTIN, George. A Fúria dos reis. Daenerys IV).

Ou depois:

"Mas então, asas negras esbofetearam sua cabeça, e um grito de fúria cortou o ar índigo, e de repente as visões desapareceram, rasgadas, e o arquejo de Dany transformou-se em horror. Os imortais estavam em volta dela, azuis e frios, suspirando enquanto estendiam as mãos para ela, puxando, afagando, pegando em suas roupas, tocando nela com suas mãos secas e fias, enredando os dedos em seus cabelos. Todas as forças tinham abandonado seus membros. Não conseguia se mexer. Até seu coração tinha deixado de bater. Sentiu uma mão no seio nu, torcendo seu mamilo. Dentes encontraram a pele suave de sua garganta. Uma boca desceu sobre um olho, lambendo, sugando, mordendo..." (MARTIN, George. A Fúria dos reis. Daenerys IV).

No programa, quando Daenerys diz a profecia da Mirri a Khal Drogo, ela reconhece a impossibilidade de tê-lo de volta porque ele estava morto assim como o seu filho, por isso ela o deixa, do mesmo modo que ela deixou Sor Willem Darry e a casa da porta vermelha, nos livros. Quando ela deixa Khal Drogo, ela se encontra com Pyat Pree e assim como os Imortais nos livros ele tenta aprisioná-la por toda a eternidade no templo e em ambos os casos ela consegue se libertar com a ajuda dos dragões, com a diferença que nos livros apenas Drogon está com ela. Por sinal, na série ela deixa Khal Drogo para salvar os seus dragões (coisas reais) e se liberta do mago dizendo que voltaria para casa (Westeros), pois nesta época ainda era forte a conexão da personagem por um lar. 

Então, pelo menos ao meu ver, as cenas finais de Daenerys e a tentativa de link com a segunda temporada, foi apenas um retcon bem do improvisado. Talvez a maior prova seja a neve sobre Porto Real que vemos no último episódio do programa. Muitos de nós pensávamos que eram cinzas por conta de toda aquela história sobre rainha das cinzas na temporada anterior, mas quando a HBO tornou público o roteiro do episódio O Trono de Ferro, que concorreria ao Emmy de 2019, descobrimos na verdade que era neve que caía sobre a cidade.

Roteiro Game of Thrones season 8, episódio O Trono de Ferro


        Logo no início, na página 1, o roteiro começa dizendo que uma "neve começou a cair e continuaria caindo ao longo daquele dia". Na página 15 (segunda imagem), o roteiro diz que "a neve caía levemente através do telhado destruído enquanto Dany passa pelos pilares, descendo o corredor central. O vermelho do telhado caído é visível no chão, coberto por uma camada de neve." 

Com isso temos uma neve completamente improvisada, que esteve ausente em Porto Real durante toda a temporada, mas que fez uma participação especial no último episódio, no retcon entre a cena de Daenerys na sala do Trono de Ferro e sua passagem pela Casa dos Imortais na segunda temporada. Tudo isso para dizer que estava lá. Foi planejado. Bem amarrado e a gente que não viu. 

Cercei Lannister em uma Porto Real sem neve, no episódio Winterfell. Imagem: HBO


Conclusão:

A Casa dos Imortais no arco de Daenerys certamente representava algo maior e ocorreu num momento em que a série ainda valorizava a Longa Noite como a principal ameaça que precisava ser enfrentada. Sim, entre a sétima e a oitava temporada vimos a Daenerys deixado sua campanha pelo Trono de Ferro para ir lutar contra o Rei da Noite. Inclusive ela foi do outro lado da muralha, onde perdeu um dragão. Entretanto, a Longa Noite durou apenas um episódio e a maior ameaça que já andou sobre a terra foi derrotada por uma faquinha de vidro de dragão em nome da subversão de expectativas e caiu sem causar danos mesmo a Winterfell. O conflito pelo Trono de Ferro foi priorizado ao invés da Guerra pela Alvorada. O Rei da Noite e seus exércitos ficaram restritos ao norte, sem que a maior parte do reino soubesse o que estava acontecendo, contrariando a nossa expectativa. 

Arcos e personagens que podiam exercer impacto sobre a destruição de Porto Real foram deixados pelo caminho e Daenerys só queimou uma cidade inteira para que houvesse espetáculo e para que sua morte fosse recebida como uma decisão necessária e inevitável. Na tentativa de amarrar todas as decisões finais de Game of Thrones, voltou-se para as primeiras temporadas para justificar que Daenerys sempre foi maligna por olhar de modo estranho para a morte de seu irmão abusador e por ousar se virar contra estupradores e mestres de escravos e que seu final esteve escrito, desde sua passagem pela Casa dos Imortais. Em contrapartida, todo o seu arco mágico sofreu com a decisão dos roteiristas em valorizar mais a política em relação a magia, de modo que a própria Casa dos Imortais foi convergida para tentar legitimar a sua virada sombria no final.  Mas como tentei demonstrar, esse momento não simbolizava necessariamente sua morte, mas sim um grande desafio que ela ainda iria enfrentar.  Khal Drogo não representava sua morte, mas um teste para mantê-la presa para sempre na Casa dos Imortais. 


                                                          Cadê a neve?

Imagens HBO: episódio Os últimos dos Starks e Os Sinos. Errata: a segunda imagem é do quinto episódio, os Sinos. 


No episódio cinco estava fazendo sol, mas no episódio seguinte a neve convenientemente apareceu sobre a cidade

Imagens HBO: episódio Os sinos e O Trono de Ferro




Por Luciana Gomes (Rhaenys)
 

Comentários

Postagens mais visitadas