[ANÁLISE] DAENERYS TARGARYEN, seu caminho sombrio não precisa ser autodestrutivo

Daenerys Targaryen e Drogon (Arte: Helenkei)

Após o final de Game Of Thrones, é tentador a gente especular ou mesmo divagar o quanto daquilo não pode ser feito nos livros “As Crônicas de Gelo e Fogo”, por mais radioativo e tóxico que tenha sido o roteiro escrito por D&D para season finale.

Sim, divagar sobre isso pode ser muito tentador, ainda mais quando Martin não facilita a vida de ninguém com suas respostas dúbias e até contraditórias: "sim e não, não e sim", "Os caminhos serão diferentes mas o final dos principais personagens são os mesmos" e mais recentemente "estou escrevendo uma história diferente, você pode escolher o final que melhor lhe agradar".

Vamos nos ater a esta última parte: agradar. Com o final podre dado a Daenerys em Game of Thrones, uma parte considerável de sua base de fãs tornou-se ainda mais desconfiada com o destino dela nos livros. Aliás, vale dizer, o desanimo esteve por toda parte, em diferentes nichos do fandom. A estória criada por Martin é incrível e genial, ninguém duvida disso, porém quanto mais tempo ele demora para sua conclusão, nos tornamos mais reticentes e... exaustos. O longo hiato também nos dar tempo para pensar em cada detalhe de sua obra e perceber, que por mais incrível que ela seja, ela tem pontos fracos, sobretudo quando levamos em consideração o desenvolvimento das personagens femininas ou a maneira como ele pode ter perdido o tempo de sua obra (lembrando que ele começa a escrevê-la na década de 1990 e já estamos em 2020, um tempo com demandas e um público completamente diferente do inicial, diversificado em muito, graças a GOT). Sendo justa, ele criou uma gama distinta de personagens incríveis, porém, muitas delas ainda flertam com clichês que valeria uma análise específica apenas para avaliar essa dimensão de “As Crônicas de Gelo e Fogo.”

Particularmente falado, eu desconfiava, antes da oitava temporada ir ao ar, que ela poderia respingar na obra principal, justamente por ter sido aventado antes que o final da série de televisão poderia ser igual o final dos livros, ainda que os caminhos fossem diferentes. Então de certa forma, uma parte da nossa percepção sobre a obra de Martin, dependia do sucesso de Game of Thrones. Esse sucesso não veio na reta final, onde a série perdeu ritmo e folego (e bom senso), atingindo o ápice em sua última etapa. Consequentemente, o clima ruim deixado pelo final de GOT, a demora e as declarações vagas contribuíram para um sentimento de desesperança que vale dizer, não está restrito apenas a base de fãs de Daenerys Targaryen.

Tendo dito isso, é importante frisar que existe uma ala do fandom de ASOIAF que de certa forma, não aceita que Martin receba críticas de fãs que estão insatisfeitos por TUDO. Ora, que Martin é um autor espetacular é inegável, da mesma maneira que é inegável a inteligência e preciosidade do mundo que ele escreveu para ASOIAF, tão pouco podemos culpa-lo diretamente pelo final desastroso de Game of Thrones.

Isso não significa, no entanto, que você não possa tecer críticas a ele por uma série de motivos que variam desde a demora (de quase 10) para o lançamento de Os Ventos do Inverno, à ideias que ele trabalha e pode vir a trabalhar nos livros. Como toda produção cultural, tanto a obra quanto seu autor estão sujeitos a críticas como acontece em qualquer outra produção. Podemos entender sua demora em publicar seus livros, podemos respeitar suas escolhas narrativas e seu repertorio de ideias, mas de jeito nenhum somos obrigados a concordar com todas essas coisas.

E por que eu estou dizendo isso? Lembram por onde eu comecei? Até que ponto a narrativa da oitava temporada pode ser uma pista pra gente pensar a estória de Martin? Então, algumas análises especificas sobre Daenerys, divagam se no final das contas, essa personagem complexa e poderosa não irá se perder também nos livros por motivos de: 1) Se ela não for amada 2) Se salvar o reino e não receber nada em troca 3) Seu caminho sombrio é destrutivo e violento.

Suspiro, longo e sofrível... Nessa parte corro o risco de ser chamada de fanática, mas vamos lá....
Foi exatamente isso que foi feito em Game of Thrones e ainda que eu não possa confirmar, isso destoa do “o final será igual mas o caminho diferente” do Martin.

Se os danyzetes em sua maioria acham que Dany pode vir a morrer nos livros conforme feito em GOT?
Evidente que sim. Na verdade há um grande conformismo dentro do fandom dela por conta disso. Todo mundo já entendeu que o plot dela não é o Trono de Ferro em si, mas a longa noite. Agora, se queremos que ela se torne uma mulher autodestrutiva por causa de questões puramente emocionais, é claro que não.

E aqui reside a maior fonte de crítica do fandom da personagem e de toda boa análise que se preze sobre a oitava temporada: a queda de Daenerys em Game of Thrones foi essencialmente machista e misógina, não importa a quantidade de tempo que eles poderia ter para desenvolver isso. O tempo para desenvolver a sua loucura não era/e não é o problema central de sua estória, mas o clichê que vem com isso. Clichê esse denunciando por canais como The Guardian, New York Time, Time, Forbes, para citar alguns.

Os roteiristas se utilizaram dos piores estereótipos contra as mulheres para derrubá-la e no cerne de todos eles estava a ideia machista de que mulheres poderosas são destrutivas. De que mulheres em dragões são perigosas. De que mulheres indomáveis (ler-se: que não escuta os homens) merecem a morte. De que se você é uma conquistadora e poderosa, você vai perder tudo por não controlar os seus sentimentos e seu emocional. Porque você foi rejeitada por um homem ou por alguém.

Então aplicando isso em ASOIAF, não queremos crer que essa mulher chocou dragões, comeu um coração de cavalo, superou a morte de um filho e tantas outras coisas apenas para pôr tudo a perder porque de repente ela se sente rejeitada por todos e se torna destrutiva a ponto disso custar a sua própria vida e tudo pelo o que ela lutou. Derrubar uma mulher poderosa usando os sentimentos dela contra ela mesma é um dos clichês mais misóginos que você poderia escrever sobre uma mulher. Então, se essa é a IDEIA que Martin faz de mulheres poderosas, não importa o seu desenvolvimento, ele pode enfeitar o pavão e entregar isso pra gente com tinta de ouro, o cerne da ideia é o mesmo e ele é essencialmente machista e misógino. Então quem rejeitou essa ferramenta em Game of Thrones, está certo em não aceita-la também nos livros e tão pouco está errado em não passar pano pro Martin em tudo o que ele faz ou decide sobre sua estória. A estória é dele, ele decide o que é melhor pra ela e ler quem quiser.

Há ainda uma tendência em algumas análises de tirar as coisas que são inerentes ao desenvolvimento de Daenerys e dar para outros personagens ou mesmo aplicar sem perceber o plot de outros personagens ao dela. Um exemplo: o rejeitado em DESENVOLVIMENTO que pode causar uma grande destruição na estória é Tyrion Lannister. Tyrion salvou Porto Real de Stannis Baratheon e só recebeu troça e ingratidão em troca. Ele foi rejeitado, isolado e traído. Em troca, ele vociferou o seu arrependimento de ter salvado a cidade e assassinou seu pai e sua amante em seguida. Não satisfeito, ele manipulou um personagem em prol de seus próprios interesses tendo sua vingança pessoal como única finalidade. Lógico que no atual estado, ele pode manipular Daenerys para completar seus objetivos, mas não significa que o “arco da pessoa destrutiva por rejeição” seja o dela.

Aliás, vale dizer, que ela é tudo, menos mendiga por amor. Ela quer um lar e nunca se enganou sobre Westeros, quem diz que ela seria amada e recebida, são as pessoas em torno dela e não ela mesma. Inclusive na série, ela tinha essa consciência e chega a questionar Varys sobre isso, mas claro, isso foi convenientemente esquecido para que sua queda acontecesse. E mais: a ingratidão que vimos em relação ao Norte nunca fez sentido, como não faz sentido de repente os Sete Reinos serem reduzidos ao Norte e a Porto Real.

Ademais, criou-se uma crença de que Daenerys, por aceitar seu lema, vai se tornar violenta e destrutiva, porque dragões não plantam árvores rs. Aí a gente abre Fogo e Sangue, um livro sobre dragões, e não é isso que está sendo dito sobre os seus antepassados. Daenerys precisa fazer guerras se ela quiser conquistar seus objetivos e as guerras são essencialmente violentas e destrutivas. Não significa que ela irá se tornar uma bola rolante de destruição, o que é outro clichê sobre mulheres com dragões. Daenerys tem sim nela, o efeito transformador e transformação envolve destruição e criação. Essas duas coisas estão relacionadas e andam de mãos dadas.

Porém, nunca vimos um Targaryen se perdendo por montar dragões. Todos os Tararyen antes dela, usavam com tranquilidade os dragões quando tinham que usar e a vida seguia normalmente. São criaturas temíveis, sim, porém, se deixadas em paz, vivem bem sem perturbar ninguém, se levados para guerra (por seus cavaleiros) mostram seu lado mais violento. Martin preparou Daenerys para aceitar essa natureza mais violenta, mas não significa que ela irá se perder por meio dela. Não dizemos isso quando homens montam em dragões para ir à guerra ou quando Robert Baratheon, Tywin Lannister e Rob Stark empreendem a suas próprias guerras violentas. Por que com Daenerys deveria ser diferente?

Por fim, cabe dizer que é provável que Daenerys enfrentará dificuldades em Westeros, que ela não será bem recebida e bem vista. Principalmente por ela ser uma mulher, sobretudo por isso. Porém, uma coisa é o universo ser altamente machista e misógino, outra coisa é Martin respaldar esse machismo e misoginia como desastrosamente foi feito em Game of Thrones e não dá pra levar o que foi feito em GOT a sério, se você não leva em consideração ou naturaliza o machismo que esteve por trás da queda dela. Deste modo, Martin poderia até escrever isso de uma forma mais bonitinha, mas a formula... ainda seria a mesma. Prova dela quem quiser.

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